terça-feira, 16 de março de 2010

Acorrentados

"Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata ; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre."


Texto de Paulo Mendes Campos, extraído do livro "O Anjo Bêbado", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1969, pág. 105.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Algo ou Nada?

Não, nós não temos nada. Não somos nada um do outro. Ontem vimos um filme péssimo, um dos piores que eu já vi e a minha vontade no cinema era de deitar a cabeça no seu ombro e viver. Se passassem dois anos, eu não notaria. Toda vez que sentisse fome, eu te beijaria mais um pouco. Não chegamos a sair de mãos dadas do cinema, não temos esse hábito. Nos esbarramos varias vezes, nossos braços se batem de uma forma que se fosse em qualquer outra pessoa, me incomodaria muito. Mas não em você. Você adora. Nós não somos nada, então não nos beijamos em público o tempo todo, só às vezes. Fomos tomar sorvete semana passada e você estava sem barba, nessas horas eu penso que se nós fossemos alguma coisa, eu nunca deixaria que você tirasse a barba, mas não posso dizer mais, senão vou ter que revelar que acho você incrivelmente lindo do outro jeito e eu não quero – ou não posso – me entregar assim. Quando você disse que gostava de mim – bastante – a primeira coisa que eu senti foi verdade, mas logo veio um medo. Você diz coisas que não fazem o menor sentido e discute assuntos que eu não quero nem ouvir e então eu dou graças a deus por nós não sermos nada. É tão mais fácil. Mas aí acontece de eu não querer dormir sozinha de jeito nenhum e pensar em ligar pra você. Uma parte de mim, confesso, preferia que você não atendesse, mas você atende e vem até aqui e nós assistimos ao nosso preferido juntos. Rimos alto e nos olhamos, procurando a alegria compartilhada. E ela está ali, no sofá, esparramada, à vontade. Meu relógio anda em pulos e só dormimos quando amanhece. Interrompo raciocínios com beijos afogados e desesperados e pausados e pesados e saudosos. Estou cheia de nada, enquanto me preparo para o vazio de amanhã.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Que seja hoje

Desculpa se eu não posso competir com o seu passado. E pedir pro seu prato vir sem mostarda, porque você não suporta nem o cheiro. Eu também vim com as minhas marcas e códigos – todos carregam os seus pra lá e pra cá e pesa demais. Mas se desfazer deles seria como deixar um braço na cadeira do cinema, ao levantar. Desculpa se eu não sei quais são os seus filmes, se não os tenho, se não os vi. Eu sou mais musical do que visual. E te perdôo por não ouvir blues pela manhã. Já perdoei tantos por isso. Seu aniversário ainda é um dia em branco no calendário. E a minha voz não te acalma. Ainda. Mas vai acalmar um dia, se nós deixarmos. Ouve. E me perdoa. Dobrei o livro na página 21 que era pra você encontrar e ler, isso significa que eu estou aqui. Aqui e nova. Aqui e inteira. E eu preciso que você me aceite.