sábado, 28 de fevereiro de 2009

Ousar


Eu não quero que você veja aqui uma mulher pedindo que um homem a ame. Eu quero que você veja, e se para isso você precisar tirar esses óculos ou fechar os olhos, tudo bem, se para isso você precisar dos seus dedos, todos eles, no meu cabelo, tudo bem, se você precisar, e eu sei que vai, colocar uma música para aliviar a tensão dessa hora, tudo bem também, eu quero que você veja que aqui está uma pessoa pedindo para ser percebida. Não exatamente uma mulher, mas um corpo com vida, ainda. Com cheiros, com pele, com um beijo a 150 por minuto, o coração na boca, com uma vida pronta para deixar na sua mão, mas só se você ousar, se você encontrar o livro que eu te dei e ficar com vontade de chorar pela dedicatória que eu lhe fiz quando desejei que você me amasse como eu amava aquele livro. Você me amou quando leu a dedicatória? Eu citei Clarice, você lembra? Eu citei minhas víceras, você lembra? É por isso que eu estou aqui e agora sou mesmo uma mulher em frente a um homem, e agora sou pólvora, açúcar e ouro. E agora sou inverno, e agora sou uma mulher que quer ser aquecida, guardada na sua caixa de memórias. E agora sou a bolha que quer estourar, o estômago arranhando, o elevador no andar da sua casa. Você teria coragem de deixar pra outra hora o pedido de uma mulher que soluça? Eu tenho sete anos e quero que você me dê a mão. Eu não vou sair correndo desta vez. Eu tenho noventa e sete anos e quero que você me dê a mão. Eu não poderia sair correndo desta vez. Eu tenho um dia dentro de mim que é só manhã, se você, você sabe, ousar.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Desculpe

Desculpe, deixei cair um pouco de poesia em você.
Um pouco é eufemismo de coração que galopa.
Que pula degraus de dois em dois. Três em três.
Por quatro cantos, retrato de poesia-balanço.
Mal acompanho, mas sei que deixei cair bem ali.
Fio de seda e mel. Cai agora, cobre a nuca. Espera.
Seu cílio é vírgula de um poema. Cortina que rouba o mundo dos seus olhos.
Pára e vê que se derramo poesia é porque cuspo amor enquanto falo.
Sua roupa está manchada. Cor de palavra-sonho. Será que sai na água?
Desculpe, deixei cair um pouco de poesia em você.
E só consigo catar o excesso em silêncio.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Despedir


Todas as partidas são idas em partes. Vai um pouco ela. Outro pouco fica. Vai voltar para buscar a roupa semana que vem, pega o resto que sobra. Deixa o sabonete na metade, no banheiro. Um sabonete nunca entrou num caminhão de mudanças. Ele fica partido. Ele sim é só. Vai a bolsa grande, de lona, preta, dois bolsos na frente, pras chicletices de mulher, zíper-estrada, vai. Fica a verde, pequena, de fim de semana, não usa muito. Espera a próxima vez. Isso é uma despedida. Ela deixou de pedir sua metade da cama. O lençol que era cor de delicado de cereja ela já vê vermelho ou rosa ou nem liga, porque se não o pede, não se dá a ele em circustância de ver com afeto. Não peça mais esse quarto, ele diz. Despeça os finais de semana com vinhos na mesa baixa e jantares iluminados e depois despeça os finais de semana com as vozes das crianças e os com as vozes da memória de se ter pedido, um dia, há tempos, uma vida juntos. Despedir é ir, despedaçado por vontade, pedindo só que o longe esteja. E no silêncio das palavras perdidas, eles se vão.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Quando passam


Quando passam – e como passam –
Elas,
As saias do céu,
Que só vestem branco e vez em quando cinza ou preto
São sóbrias.
Disfarçando a independência.
Aprendi com as nuvens a ser mulher-moldável.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Memória

Memória tem cheiro? A criança pergunta.
O pai na hora se lembra do forno antigo expulsando o bolo branco,
almofada pra calda de laranja.
Sim, meu filho, memória tem cheiro.
E o menino pensa no armário lotado do quarto que cheira a velho.
A memoria não precisa caber em gavetas.




domingo, 1 de fevereiro de 2009

Você

Você pode chegar mais perto, se quiser. É que você não tem certeza se ele quer fazer fronteira com a sua camiseta amarela ou se prefere deixar esse corredor profundo, paredes pintadas de azul, entre vocês. Mas nenhum homem é uma ilha, você pensa. Nenhum coração é uma ilha, você pensa. Há uma reta ligando todos os pontos dentro de você, mergulhada num líquido que não é cor de parede, é vermelho, porque é amor. E há tanta coisa mais.

Há um disco do Chico na mão dele. É de 87. A capa está rasgada apenas nas pontas e as mãos dele tapam os olhos do cantor. Uma pena, você pensa. Na outra mão, um copo de cerveja. Novamente, o líquido, mas outro, dessa vez.

Você pode chegar mais perto se quiser. Você quer. Só um pouco. Você passa a mão em volta da boca, secando a ansiedade que começa a escorrer. Ele vai colocar o disco, se deixa envelopar do azul das paredes e o corredor vai virando distância vencida. Ele está perto. Você não está entendendo que essa música, a sétima do disco, ele colocou pra você? Que a agulha do disco costura um som que é seu? Todo o sentimento. O som sai empoeirado, a música tem cheiro de guardada, faz tempo que todo o sentimento está no armário de madeira, ali, embaixo da TV, esperando você chegar.

Ele sorri branco, puro, limpo pra você. O tapete da sala é listrado, assim como a camiseta dele, assim como a sua vontade, que oscila entre sins e nãos em espaços de tempo muito curtos. Você tem uma vontade listrada. Você é tão medrosa. Pensa no liquido, o vermelho. Pensa que você está aí parada, joelhos vizinhos de porta, respiração falhando, parecendo uma boba e pra quê?

Você chega mais perto, mais perto, mais perto, pede desculpas e sai correndo pela porta.