terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Confissão #3

Nunca tive preguiça de gesto,
Só de arrumar palavra comprida.
Por isso escrevo
Poemas tão curtos
Sobre movimentos infinitos.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Aconteceu com uma amiga minha. Solteira.

E aí você deseja que ele goste também de uvas como você e na primeira oportunidade que você tem de descobrir isso, ele te diz que odeia – as uvas – e você pensa tudo bem, desde que ele goste de ler, eu gosto, quero alguém que goste também, muito, e ele lê, mas lê aqueles livros que você, hum, não gosta muito, está bem, você detesta, Código da Vinci e outros fáceis de achar na entrada de qualquer livraria de Shopping, você não é esnobe, claro que não, você só quer - e peloamordedeus, seria pedir demais? – alguém que goste de você e que você goste também e que seja parecido contigo. Não é pedir demais. Não é. Mas você aceita que ele odeie uvas e os seus livros, ele é bom caráter, você está muito exigente, garota, quer mais que bom caráter? Isso é ouro hoje em dia, muita gente nem tem. Aí ele diz que te adora e não te liga e te faz de idiota e diz que não quer mais te ver. Caráter? Pra que mesmo? Ele não usa. Mas você até aceita porque ele tem uma voz que você acha linda e um cabelo bonito, sabe? Daqueles bagunçados de propósito. Ou então, pior! Ele tem bom caráter sim, ótimo, sempre te liga, diz que te adora to-do-san-to-di-a, mas você, ai, você, desculpa, você não gosta dele, não bateu, entende? Mas você conheceu outro cara que já leu todos os livros que você já leu, que conhece umas músicas que você sempre quis conhecer, que ama uvas, fruta preferida dele, não acredito! É a sua também! Oh, god, ferrou, mas ele, sei lá, é meio estranho, às vezes, não fala muito de mulher, te chamou pra sair, mas não te beijou, nem chegou muito perto e você estava com o vestido preto, com “o” vestido preto, aquele que você usa quando tem as melhores intenções. Cara, se uma pessoa te chama pra sair e não te beija enquanto você está usando aquele vestido, baby, esquece, ela não vai te beijar nunca mais. Aí, a sua amiga te chama pra sair pra dançar e você vai, bonita até, e um cara te olha, opa, você gostou dele, ele vai falar com você, bate um papo rápido berrando no seu ouvido, porque afinal de contas, vocês estão numa boate e não num café, mas até que seria legal tomar um café com ele, morar junto, ter uns filhos, por que não? Cala a boca, você nem beijou o cara ainda. Ele não para de tomar cerveja, você odeia cerveja, mas ele é lindo, muda o foco, vai, tira da cerveja e põe no rosto dele, você vai se dar melhor assim. O beijo é bom, sabe? Você gosta. Mas ele não para de beber essa merda e isso está fazendo ele quase, sei lá, cair em cima do DJ, já pensou que vergonha? Você quer saber se ele gosta de ler, mas ele não entende mais o que você diz, você grita “ler” e ele ouve “beber?”. Oi, gatinha. Você diz “ler” e ele ouve “hein”, você desiste. Nem lembra das uvas, ainda bem. Você achou ele meio mala, pô, bêbado em cima de você, que desperdício, vocês poderiam ter aproveitado esse tempo de uma forma tão melhor. Mas ele te liga e você esquece a cerveja, o bafo de cerveja, os passos trôpegos e lembra só dos olhos azuis, ele tem uns olhos, que nossa, impressionantes mesmo. E a sua mãe ainda te chama de exigente.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

À toa

Um poema
Que não quer ser poema.
Uma moça penteando os cabelos,
Às vezes, rima.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Professor Louis Levy's quotes

"We're all faced throughout our lives with agonizing decisions, moral choices. Some are on a grand scale, most of these choices are on lesser points. But we define ourselves by the choices we have made. We are, in fact, the sum total of our choices. Events unfold so unpredictably, so unfairly, Human happiness does not seem to be included in the design of creation. it is only we, with our capacity to love that give meaning to the indifferent universe. And yet, most human beings seem to have the ability to keep trying and even try to find joy from simple things, like their family, their work, and from the hope that future generations might understand more".


"You will notice that what we are aiming at when we fall in love is a very strange paradox. The paradox consists of the fact that, when we fall in love, we are seeking to re-find all or some of the people to whom we were attached as children. On the other hand, we ask our beloved to correct all of the wrongs that these early parents or siblings inflicted upon us. So that love contains in it the contradiction: The attempt to return to the past and the attempt to undo the past".

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Noiteando

Estrelas se colando ao teto.
Se eu abro e fecho os olhos
rapidamente,
elas até brilham.
Eu não preciso criar mais janelas
para que hajam mais céus.
Fico só noiteando,
enquanto você dorme.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Do autor ao personagem

Acredito nas coisas que acontecem como água. assim, em fluxo de transparência., impressas no corpo. Estou sendo absolutamente eu agora e no segundo seguinte, sua autora. Não fiz nada por você. Seu nome, seus gestos, suas roupas, fiz tudo por mim e só me dei conta quando você disse na sua carta que me tinha como uma neta, que pensa até em que lugar da mesa eu sentaria se passasse o ano novo com vocês. Logo eu? A única pessoa capaz de imaginar e planejar a sua morte. Você amaria uma pessoa sabendo que a sua vida se equilibra naquele fio solto na barra da saia dela? Por favor, não quero recheio no meu bolo, não posso aceitar. Sim, eu fiz você mais doce do que alguém com a sua historia poderia ser e agora peço que você me surpreenda. Como? Eu não sei. Preciso fechar os meus olhos e enxergar com as suas mãos. As únicas reclamações que você tem em relação a mim são a temperatura do banho, quente demais, e que vez ou outra, você se sente um pouco exposta. Você faz questão de marcar bem o “um pouco”, na sua carta, que é pra não me chatear. Eu sou a sua autora e não o seu jardim. Meu deus, eu criei uma pessoa acolchoada, e tenho medo que essa seja a textura do meu sentimento de mundo. Você não tem culpa, eu lhe dei a chance de falar e você falou. Podemos ter menos cuidado uma com a outra a partir de agora. Se você for mais real, quem sabe eu não serei também?

sábado, 31 de outubro de 2009

Pensamento do dia #1

Eu fico pensando se tem algum momento em que todas as pessoas do mundo estão de olhos fechados ao mesmo tempo. Todas. Entendo que existam os fusos-horários e os que têm insônia e os vigias noturnos e os preguiçosos e as mães de recém nascidos e a China. E fico feliz que os chineses fechem os olhos enquanto riem. Aumenta as minhas chances. É por isso que em alguns momentos do dia, assim, de repente e sem que ninguém veja (se vissem, já não adiantaria), fecho os meus e penso que se alguém estiver tendo esta mesma idéia em Sidney, Moçambique, Brasília, não importa, eu vou ter feito a minha parte.

sábado, 24 de outubro de 2009

Lápis Azul


A minha caixa de colorir era azul. O banho todo me tomava em água de brincar. Acontecia assim: água quente-fria-tempo. Demorava seis banhos em pé pra encher a banheira até lá em cima. Banho deitado, em palavra de mãe, é de relaxar. Em palavra de menina, é de virar peixe. A gente entrava como se entrasse num quarto sem barulho. Tchibum era o único. Devagar pra não levar tombo. Depois, fazia nado que era de ponta a ponta na água. Onda quebrando pra fora, no chão. Não briga, mãe. O olho terminava o banho primeiro que eu por motivo de sabão, mas eu não saía. Assoprava a água pra fazer vida pro barco e ele ia. Às vezes, virava. Só quando a toalha vinha num abraço é que eu tinha que sair. Até hoje é assim, me dá um lápis azul que eu desenho um dia feliz.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Poema Bobo

Eu quero morar numa casa
com janelas de madeira.
Daquelas que o sol vem em listras.

Pintar de laranja, eu gosto.
E torcer pro tempo virar
e virar de novo,
tempo redondo-quadrado.

Passar o dia vendo formiga na janela
vai ser bom.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

11.10.09


A tristeza é só uma ponte.
Aperta no peito e no pé.
O que a gente precisa é de fôlego.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Receita de família

A gente precisa lembrar que foi escravo no Egito. Mas eu já preciso lembrar de tanta coisa. Será que de vez em quando, eu posso esquecer essa parte da escravidão, da fuga às pressas, do mar indeciso? Que o meu pai não me ouça, mas a memória nem sempre é uma benção. Ainda bem que não há espaço para guardarmos tudo e freqüentemente podemos arrumar nossas gavetas em paz. O problema é quando a doença faz essa escolha por você. A doença não gosta de perguntas feitas há cinco minutos. A resposta, então, ela nem dá bola. Ninguém ligou muito quando a bisavó esqueceu em que ano veio da Polônia. 34 ou 36? Não faz mesmo muita diferença. Também não houve grande comoção quando ela começou a confundir os nomes dos mais novos. Mas quando a minha avó disse que a mãe não lembrava mais como se fazia a chalá, as reações foram as piores. Minha tia sugeriu que alguém aprendesse antes que ela esquecesse de vez. E lá fui eu. Minha avó, sem paciência, logo disse: se ela se confundir muito, liga a TV e desiste. Eu e ela na cozinha. E uma folha de papel que chegou ao Brasil em 34 ou 36, com a ordem e as quantidades dos ingredientes. Eu pegava duas xícaras de farinha e ela jogava metade de volta dentro do saco. Eu dizia: mas está escrito que são duas xícaras. E ela fazia que não com a cabeça e com a mão. Primeiro a água, depois o fermento. Ela jogava o fermento primeiro. Parecia mesmo que a minha avó estava certa. Comecei, então, a me lembrar do cheiro, o cheiro que abafava todos os perfumes da casa, que acordava o tio no sofá, que era doce e salgado na medida exata, que reunia uma família inteira em volta dele. Exatamente o cheiro que eu comecei a sentir naquela cozinha, com a minha bisavó do meu lado, sentada na cadeira, pacientemente esperando o momento de abrir o forno. Só então eu entendi que ela não seguia a receita. Ela era a receita. E disso, eu nunca quero me esquecer.

 

 

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Quotes #1

"Why are you leaving me?
He wrote, I do not know how to live.
I do not know either but I am trying.
I do not know how to try.
There were some things I wanted to tell him. But I knew they would hurt him. So i buried them and let them hurt me"

Jonathan Safran Foer

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Primavera

Terça-feira não é dia de receber primavera.
Não separei meu vestido de cor.
Não coloquei o sol virado pra janela.
Não acordei de bom dia, acordei de dia, só.
Pouco tempo faz que eu era cinza. E agora?
Seja terra, eu peço às mãos daquele homem.
Hoje eu queria ter nome de flor.

Fluxo

Quando sou água, atravesso sem que ninguém me veja. Inteira não suporto, você me dói.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

A verdade é que


Eu me comovo com as palavras. As vezes eu apenas penso em escrever e já choro. As vezes eu espero que as palavras venham pra poder chorar. Depende. A possibilidade das letras arrumadas entrar em mim chutando a porta é muito grande. Todo o meu corpo se abre em afeto e fôlego. Eu existo.

sábado, 12 de setembro de 2009

Confissão #2

Todas as histórias aqui são inventadas. Todas as histórias se passaram comigo.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Quase

Tenho 5 ponteiros em cada mão apontando para um tempo que é unicamente o do corpo. Se alguém me perguntasse que horas são, eu poderia dizer apenas: hora de ser outra. E com isso não sei mais dizer quando cheguei aqui neste quarto ou quando foi que lhe vi pela primeira vez desse jeito tão, não sei, exposto? Sim, exposto é um bom adjetivo quando estamos assim quase-entregues. Pois que todas as minhas partes me lembram que somos um quase-casal. Que há algo entre nós, como um hífen, guardando a chuva do lado de dentro deste lugar. Quero me tornar uma mulher que não conhece formas retas, camas exatas, fatias de quartos. Anda e me bagunça, porque eu não posso mais dormir numa quadra de tênis. Estamos a beira de viver e no entanto, fazemos a volta. Você não tem um milímetro de amor e eu só sei andar pulando réguas de dois em dois.


(texto publicado em canetalentepincel.blogspot.com)

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Portas Abertas

A generosidade começava no movimento das portas. Os armários sempre meio abertos, nunca fechados por completo. Como se as portas de madeira escura fossem uma senhora, muito vó, que já não lembrasse mais como se guardam os segredos. Camisa de seda com estampa de gaivota (mãe diz que essa era a sua favorita, pelo tecido, pelo desenho não) ponteando a gola pro lado de quem abre, e eu não sei qual leveza é maior, se a do fundo ou a do que voa. A camisa. Você era a fada mais bonita daquela apresentação de balé. Não era fada, vó, era bruxa. Pois era tão bonita, que pro meu olho, apareceu fada. Ganhei flores e abraços de gaivota nesse dia. A camisa. Você lembra da vovó com esses óculos redondos?, pergunta minha mãe. Lembrar, às vezes, é viver com saudade. Desde que a vovó morreu, eu vivo com saudade os óculos redondos, os telefonemas de domingo, o sotaque de quem trocou uma casa longe por outra aqui. O sotaque de quem perdeu bonecas, quintais com árvores, de quem perdeu mãe. Vó, não é dois pessoas, é duas pessoas. Galinha é galinha e pessoa é pessoa. Isso eu preciso saber, o resto não me amola. A gente ria. Era engraçado? O sotaque. Esses óculos voltaram a estar na moda, você sabia? Quer pra você? Não ficam bem pra mim. Visto os óculos, servem perfeitamente para o meu rosto. Minha mãe ri e fala com um certo tom de deboche: por que você sempre gostou dessas coisas que não são muito do seu tempo? Talvez porque eu nunca tenha conseguido tirar as pessoas das coisas. E as melhores pessoas estavam dentro das coisas mais fora do meu tempo. Ou mais dentro. Acontece. Respondo apenas: não sei, é gosto. Não são só estes óculos que colocam o passado no meu rosto.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Aniversário

A festa aconteceu de mim pra fora.
E eu tive 100 balões estourando aqui dentro.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Half the perfect world


De onde nasce novo amor,
Eu pergunto:
Tem mais?

Confissão #1

Na hora de comer,
Adorava cortar a comida em pedaços muito pequenos.
Detestava arroz.
Ele não sabia brincar.

sábado, 1 de agosto de 2009

As mãos

Mãos feitas de rodas-gigantes.
De movimentos independentes,
Circulares.
De trilhos imprecisos.
Sem freio,
Nem problemas.
Aceito surpresas:
O coração é desdobrável.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Polônia




“Você sabe onde fica a Polônia?”, pergunta a senhora de 85 anos.
“Na Europa”, responde o neto mais velho.
“Entre a Alemanha e a Ucrânia”, responde o filho do meio.
“Longe”, responde a neta mais nova.
“A senhora está esquecendo as coisas?”, responde a nora.
“Não quero saber”, responde a antiga vizinha.
“Praquele lugar eu não volto”, grita o marido.
A senhora então, puxa as mangas da camisa, como fizesse um calor repentino e diz:
Entre o começo das mãos e o cotovelo. Não a encontro em nenhum outro lugar.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

O primeiro

Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. O primeiro. Éramos dois pequenos. Eu maior. Pai me fez maior da turma de compridez, mãe me fez de coração. Era uma menina que cabia pouco. Mas, nesse dia, a régua faltou. Ele me abria sorriso porque era arredondado de barriga. Os outros me faziam mostrar menos dente. Quem faz desfeita com açúcar, gente doce desconfia. Inteligência se afeiçoou a ele e a gente escadeando mais alto no pátio da escola pra ouvir as coisas acontecidas, até mesmo em número, na voz dele. Eu perguntava: essa não é a voz mais passarinhosa do mundo? E as meninas botavam o olho longe. Só eu mesma que achava. Foi quando ele pegou os meninos pra dar interrogação: o sorriso dela não é o mais? Prefiro a Fernanda, disse um. Depois da Carol, disse outro. E ele botando ponto final sozinho na duvida. Gostando. A gente precisa dar fim a essa coisa de engolir borboleta. Tristeza é botar elas pra dormir. As minhas não tinham sono há muito tempo. Um dia, ele disse que vinha em casa falar. Eu: é assunto de doença? Ele: mas num mata, eu acho. Eu: é assunto de ir pra longe? Ele: só se for junto. Foi quando ele barulhou na porta. Entrou. Peixeou no sofá azul, na ponta, sem muito mergulho e levantou um papel que falava: eu gosto de você. Só o papel pra falar mesmo. Eu, nada. Era muito. Era o primeiro.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

O Jogo da Amarelinha - Julio Cortázar

"Toco a tua boca, com um dedo toco o contorno da tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você.

Tu me olhas, de perto, tu me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os cíclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água."

sexta-feira, 5 de junho de 2009

A voz do autor

Estou emprestando a voz a uma mulher que não sabe falar em público. Ela ouve os homens falando e ri, você acredita? Ela finge que entende o que os homens dizem, principalmente, quando são altos, bem apessoados e têm carro. Estou emprestando a voz a uma mulher que não é. De onde ela veio? Eu não sei. Sou somente a proprietária e ela, o inquilino. Está me saindo mais caro do que eu pensava, mas já assinamos contrato, fizemos acordo, apertamos as mãos, fechamos negocio, abrimos garrafa de vinho pra comemorar. Mentira. Eu nunca beberia com uma mulher como ela. Ela é assim, como eu posso explicar? Ela é uma mulher que bebe whisky misturado com cerveja barata. Não fica bem pra uma pessoa como eu andar com uma mulher como ela. Não que eu ande, claro que não. Negócios são negócios. Olha como ela se veste: jaqueta jeans, mochila jeans, saia muito curta, acho tão vulgar. Vulgar! Estou emprestando a voz a uma mulher que grita. Que muda o tom muitas vezes enquanto fala, alternando volumes com a mesma freqüência de quem alterna pés enquanto caminha. Não que eu seja egoísta, egocêntrica ou coisa que o valha, mas eu tenho apreço pela minha voz. Não queria largar na boca de uma qualquer. Ela é uma qualquer. Ela nunca saiu do pais, você acredita? E quer saber do pior? Ela diz que já foi pra Argentina. Duas vezes. Viu num filme na televisão e agora acha que conhece o pais. Um filme não, um programa desses de turismo que passa na TV aberta. Ela mente. Estou emprestando a minha voz a uma mulher que dorme de calcinha e se cobre com lençol. Ela diz que não sente frio. Quando? No dia em que combinamos que a minha voz seria dela. Não vai durar muito tempo. É só por algumas páginas. Sete capítulos, combinamos. Nem mais, nem menos. Também, ela não teria muito mais a falar além disso. O que uma mulher que não sabe nem a capital da Alemanha pode ter tanto a dizer? Ela sai com qualquer cara que aparece. Ela tem os dentes amarelados. Ela volta pra casa tarde, esquece a chave e acorda a vizinha pra não dormir no corredor. Ela já dormiu no corredor. Ela dança de forma sensual sem nenhum pudor. Ela já disse uma vez, não lembro quando, mas disse, que não quer ter filhos porque da muito trabalho ter que arrumar alguém pra cuidar deles no fim de semana. Você ouviu? Ela quer viver como uma adolescente. Ela não sabe a idade que tem. Eu chutaria 35. Você acha pouco? Estou emprestando a minha voz a uma mulher que chora na novela e no intervalo da novela. Acendo um cigarro. Estou rouca. E ela, ela vive.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

A letra "A"


Antes, as amoras
Algodão avermelhado
Açúcar achado ali
Aceita?
Aceito.
Agora, amantes
Ainda açúcares
Ainda achados
Acontece assim:
As almas alinhavadas
Até aqui, amor


domingo, 24 de maio de 2009

De uma janela, em Copacabana

Onde ela nasceu não é assim pequeno pros lados, mas é pequeno pra frente. A pessoa cresce, não precisa nem ser muito, e vai trabalhar na lanchonete da avó, na vendinha da mãe, no açougue do pai.

Lá onde ela nasceu, quem tem sorte, divide o pai com muita gente. Quem não tem, tem só a mãe mesmo. Mas tá bom. Pra ser alguém na vida, só mesmo indo pra cidade grande, ela pensava. Grande pra frente, de oportunidade. Oportunidade é uma palavra que ela aprendeu no jornal da TV e gostou, passou a usar. Assim como passou a usar “muito maneiro”, ao invés de “muito massa”, embora os irmãos estranhassem nas cartas.

Agora ela está na cidade grande, no bairro grande, no apartamento que é um exagero. Nunca tinha visto tanto espaço vazio junto. Ela trabalha em Copacabana, bem no finzinho, dá até pra dizer pras amigas que é quase Ipanema. Ipanema é muito maneiro, ela pensa. Agora ela está na janela, quer dizer, atrás da janela fechada, mas que tá tão limpinha, que é como se estivesse aberta, dá pra ela ver tudinho. O mar, que logo que ela chegou, contava quantas vezes o tinha visto, mas quando chegou na vez 30, parou de contar. Lá de cima, da janela, ela não consegue ver os peixes, de coisa que nada, ela só vê mesmo uns barquinhos lá no fundo e uns homens. “Eu que num tenho coragem”, é o que ela diz pra Dona Elizabeth quando a patroa pergunta se ela já mergulhou.

Dali ela vê os meninos vendendo côco o dia todo. O côco prontinho, aberto e com canudo. Ela se pergunta quem é que sobe na arvore pra catar a fruta, já que esses meninos são muito magrinhos pra isso. Tem também muita gente com pressa embaixo dos pés, que vai de carro, de ônibus, de van, de todo jeito. E ela olha, olha, mas como não tem pressa embaixo do olho, não consegue acompanhar.

Se a patroa chegasse agora, ia ver as bochechas dela pegando fogo, é que acabou de passar no calçadão, o Raimundo, o porteiro do 1530, da praia mesmo, que ela conheceu na feira. Ela gostou dele. Mas não está entendendo porque é que ele sentou ali no banco, ao lado do homem de ferro, que fica o ano todo lá parado, sentou e pegou o telefone, bem na hora do serviço. Ela podia até gritar, mas não gosta de abrir a janela pra não parecer que tá à toa, sem fazer nada. Ela ouve um barulho que não é a campainha. É o celular novo, cor de rosa, que começou a tocar na cozinha. Deve ser Raimundo.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

O lado esquerdo


O lado esquerdo. Do quarto. O lado onde pintavam os dedos de tinta colorida e depois empurravam a parede de rosa ou violeta ou laranja. A moça era tão sorriso. E a felicidade que devia mesmo dar como tinta no corpo. Sabe chorar de rir? Então. Uma lágrima verde, outra azul, outra cor de abóbora. Um roxo escorrendo pelos braços, por debaixo da camisa que pode até ser branca, tanto faz. Iam colorescendo juntos, soprando arco-íris como bolhas de sabão. E deixando as bolhas estourarem nos seus pés e rindo ao ver que os sapatos tinham ficado daquele jeito, felizes, como eles. O outro lado, não sei.

O lado esquerdo. Da cama. A moça era tão algodão. Nem lençol fazia vez de filho, nada no meio do casal. Uns contam bichos-travesseiro pra dormir, eles contavam qualquer coisa engraçada que lhes viesse à cabeça. 1, 2, 3, 15, 22, e eram muitas as coisas e até dormiam mais tarde por isso. Acordavam sábado no chão da sala, domingo na rede da varanda, terça no corredor, entre o quarto e o banheiro. A cama era somente o lugar que acomodava o sono. Só havia uma regra: que ela dormisse sempre do lado esquerdo dele. O outro, hoje não.

O lado esquerdo. Do corpo. A vida surgindo ali, nascendo. A moça era tão ai, era tão ela, era tão. E mais daquele lado. Tinha rompantes de desejos, queria nadar na casa, queria dançar no telhado, queria alimentar o cachorro do vizinho que ela conseguia enxergar da varanda, mas nunca sabia como chegar até ele. Sentia que era ali e somente daquele lado que os abraços aconteciam e o rostos ficavam vermelhos nas maçãs. Para eles, para ela, o coração era uma máquina de bombear felicidade e colorir pulmões, veias e tecidos. Tudo por causa do lado esquerdo. O outro, não importa.

            

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Água doce

A cidade amanheceu um rio. Mesinha da criança na escola é o joelho da cidade. Água até lá. E como. Madame escuta que ainda tem peixe no mercado. Mas quando viu, já passou. Moço da farmácia bate os pés e as mãos bem rápido pelo caminho pra conseguir entregar o remédio da menina. É quase uma prova com obstáculos. Passa por sofá laranja-marrom, cor de pingo que suja. Passa por pneu de borracha. “Algum carro ficou órfão de sua pata por aí”, ele pensa. Passa por sacolas de padaria, bolas de futebol, sem criança correndo atrás, estranho. Estranho bom. A cidade é um rio, agora. Há quem diga que a chuva castigou nesta semana. Ninguém sabe que foi a menina. Ô, menina, você não sabe que um choro teu enche um rio? De pessoa doce, água gêmea. Lágrima pegou tua doçura e inundou a cidade. Não, não vá chorar mais por culpa. É bonito de ver a cidade barqueando na tua tristeza. Deixa. Não vamos contar a eles que não foi a chuva.

sábado, 9 de maio de 2009

Sobre as cartas de amor


Sei ler, sei escrever e sei passar o dedo nas palavras.
Como no passado do bolo,
Enquanto massa invejável ainda.
Não conheço o alfabeto das flores.
Mas sei que o amor caminha sempre para as extremidades do corpo.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

A descoberta

Tirou 9,5 na prova, podia ter tirado 10, o menino, mas pulou uma questão, não viu. Na mesa ao lado, os outros riam: ah, não sabe quem descobriu o Brasil. E o menino com vergonha de ter olho que pula, tratou logo de se defender. Foi a professora, ela escondeu a caravela do Pedro Álvares Cabral na outra prova, na minha não estava não.

A turma era cheia e era como qualquer outra: uma voz lá na frente ensinando historias que não eram deles e outras vozes lá atrás ensinando outras tantas mais interessantes. No meio, aquele monte de barulho de caneta passando no papel. E na primeira fila, o menino.

Professora, aquilo é um b ou um d? Ih, menino, é miopia. Você vai precisar usar óculos. A descoberta que não era do Brasil, mas que dizia muito mais ao menino do que qualquer outra. Do alto dos seus 8 anos, o menino encheu o peito de ar, como se garantisse um pouco mais de vida e perguntou: é grave, professora, essa miopia? Era mais uma descoberta que ela fazia naquela semana. E se é pra falar de gravidade, ela é quem tem mais historia pra contar. Não, menino, você não vai ter nem que operar. Sorte? Talvez. Pensava na mãe que, assim como o menino, não viu a doença chegando e agora uma operação já não seria mais a saída. As crianças riram, chamando o menino de quatro-olho. E dai? Se é pra ver melhor, que dessem 4, 10, 20 olhos à minha mãe e ela não estaria assim, como está agora. Calma, menino, de óculos você vai ver todas as letras, todas as perguntas da prova, vai até achar as meninas mais bonitas. E piscou pra ele.

Mas não tem outro jeito? Não tem outro jeito pra essa doença, que não essas sessões que a deixam fraca, coitada, olha como ela está magrinha. Não tem. Só usando óculos mesmo ou lentes. Você prefere lentes? São como gelatinas sem sabor dentro do olho. Professora, eu posso ligar pra minha mãe? Ela está fraca, eu já disse, mal vai conseguir levantar da cama e atender o telefone que está na sala.

Hoje foi um dia e tanto e quem é que se importa mesmo com a descoberta do Brasil?



sábado, 11 de abril de 2009

O tempo do tempo

Tem que pegar na mão esse menino – o tempo – e dizer: larga essas pernas de movimento. Pressa tem borboleta pra ver primavera. Você nem flor faz. Só vê. Então desengole as asas, respira. Faz fila atrás do antes. E bóia, só um pouco. Assim, bom menino. O tempo.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

O tempo do corpo

O corpo presenciando outro corpo.
Se retrai. Não de prazer.
De medo por não saber até quando.
Minha alma lenta em descobrir paixões.
Até quando, amor?
Até quando amor?
O corpo não espera.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Jazz


Acordo com ele.
Durmo com ele.
Canto da boca vaga-lume.
Assopro. Ele.
Tomo uma taça com ele.
Um banho com ele.
Mudo o meu cabelo por ele.
Ouve, baby.
É Jazz.

sábado, 28 de março de 2009

Azul


Os olhos azuis. De tanto abrir embaixo d’água.
Tristeza de peixe colore.
E sempre é possível lavá-los sem dor.

quinta-feira, 26 de março de 2009

A mãe


A mãe acorda antes mesmo do dia. Não é um tic-tac que a desperta atrás da cama de madeira escura, é um tum-tum de mãe mesmo, no centro da cama. Então, antes do dia, há a mãe, empurrando a coberta de flores miúdas e erguendo-se sobre os chinelos que são de cor cinza, como os cabelos. Ela precisa acender a luz do banheiro não para enxergar os grampos que vai tirar um a um dos cabelos – todo dia é assim – mas para que nenhum se perca no caminho até a pedra branca de mármore que faz da pia uma ilha invertida, um ponto de água cercado de dureza.

Ela entra no quarto dos meninos, paredes azuis, motivos de mar, como quis o mais velho. O quarto-cofre, como chama a mãe quando está apenas com ela mesma. O joelho direito ela apóia na cama mais baixa e cobre o pequeno de lençol amarelo e de dorme, meu príncipe. Com o mais velho, ela apenas passa a mão sobre o rosto, como se assim garantisse um último sonho bom antes da hora de acordar.

O quarto, o cofre, o de motivos de mar, o que tem dois meninos de alturas diferentes em duas camas de alturas diferentes, respira amor. E todos sentem. A mãe continua e de lá até a cozinha um corredor de paredes brancas e vermelhas lhe sorri imóvel. Passa por aniversario de vó, campeonatos de bola, semelhanças de pai e filhos. Ela não nota mas o quadro das frutas está ligeiramente torto, o cuidado passa reto pelas frutas e vai até o filtro de água da cozinha. A água sai marrom às vezes. Mas o amor nunca é marrom, porque é potável. A mãe olha o relógio da parede pendurado sobre a mesa e vê que já são seis horas. Ha um convite, então, dentro da moldura redonda sobre a mesa, e a mãe caminha alguns passos, só mais alguns, para alcançar as janelas e deixar chegar, finalmente, o dia.

segunda-feira, 16 de março de 2009

A beleza

"tu, que ontem eras só toda a beleza,
es também todo o amor agora."
(Jorge Luis Borges)



Mais bonita do que hoje, só no Dia. Chamo de Dia, com letra maiúscula, o dia em que você me pediu pela primeira vez que eu cuidasse. Você não disse de você. Disse apenas, com faísca nos olhos e raízes nos dedos que me tocavam: cuida. E eu abri os braços como se um deles apontasse o Japão e o outro o Canadá. E o seu vestido branco, perto do ombro direito ficou três gotas molhado. No Dia, eu vi que as mulheres ficam lindas quando podem chorar. E mais lindas quando o choro não é dor. Embora você dissesse que doía sim. Doía pelas outras mulheres que não eram de homem nenhum que as quisesse e cuidasse e prendesse e soltasse e abrisse, como você era minha. E aí eu vi que não há nada mais bonito do que uma mulher que precisa que um homem durma depois dela para que ela faça o seu berço e sonhe em paz, até o próximo sol. E aí eu vi que não havia nada mais necessário para um homem que carrega flores no peito, do que a sua beleza naquele dia.

Mas hoje, hoje você despe-se do seu vestido branco, do cinza listrado, do florido que eu tanto gosto, hoje você despe-se da sua sandália de dedo, dos sapatos de boneca. É tudo pano que sobra. E veste apenas as mãos daquele mesmo homem que carregava flores no peito e agora carrega também terra fértil para que cresçam mais flores e fadas e luas neste quarto-mundo. Veste as mãos deste homem que o braço dele é a tua saia de seda pura. Braços-abrigo, nossa melhor roupa de festa. Comemoraremos enquanto você se cobre com os olhos, as sombras, os cheiros que são meus, e os confetes estouram e os sorrisos se costuram e os tecidos se misturam fazendo inveja às outras, àquelas.


Quantas mulheres eu haveria de conhecer na vida cuja beleza me doesse dessa forma? Penso nisso enquanto espero, na sua janela, que você acorde. Do outro lado da janela é muito pequeno para quem quer ter o mundo em dez dedos. E eu não entendo como não tem uma fila de gente ou qualquer coisa viva esperando para ver você acordar. Lindo é um avião decolando, você é outra coisa que eu não sei dizer. Sei que o sentido de tudo é um par que coloco sobre você e passo horas inteiras te olhando, me cansando apenas pelos dias em que não o fiz. Se hoje faz um ano do Dia, essa então é a idade da minha alma.

Antes dos seus, eu nunca tinha reparado nos cílios de nenhuma outra mulher. Mesmo que eu já tenha dito que tenho amor, nojo, desejo, raiva por elas, e tudo isso é coisa que se sente olhando em linha reta. Hoje eu sei que os cílios são a sua pequenice que eu mais gosto. Gangorra do pé ao céu. Daqui, estou sobre eles. E me sinto mais feliz do que uma criança de cinco anos.
O que seria das palavras se não fosse você e o teu jeito de dormir com seis travesseiros? As palavras dançam até virarem poema, apenas para dar forma a esta imagem que é a delicadeza sobre um lençol. Outro dia mesmo o “sublime” encontrou o “profundo” e eu escrevi dois dedos de texto para você.

Outra mulher não me faria mais vivo do que você me faz. Outra não me abriria na página certa. Antes, me fugiam as palavras, hoje, elas até formam fila.

Não sei se você sabe, mas todos os meus gestos são declarações de amor a você. Por isso, te peço, como você me pediu no Dia que eu cuidasse, te peço como alguém para quem um sim é ouro, te peço em um volume que outra não ouviria, volume perto, canto de pedido, te peço apenas que, ao acordar, ilumines o quarto, o mundo, a minha janela, com o seu sorriso.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Parallel Synchronized Randomness



Ele sorri. Eu dobro meus joelhos e estendo meu corpo por sobre uma pedra gigante, o peito endurecido de cinza, um arco que se forma com os braços encompridando-se em sua direção. Ele sorri e o meu estômago se comprime. Mais e mais, à medida em que a boca se alarga. Quase não posso engolir essa nossa saliva tinta de vinho. Tento esticar um pouco uma das mãos, como se assim pudesse tocá-lo e fazer parar o movimento da sua boca, de maneira que eu, que já quase não respiro, possa de novo voltar à superfície. 


Mas como? Eu penso, como ele consegue me ver aqui debruçada sobre um peso que não é meu, que não sou eu, e que aos poucos – eu começo a temer – faz com que a frieza monolitica e eu sejamos uma. A rocha multiplicando sua imobilidade.

É com um último fio de delicadeza, então, que eu tento puxar algum ar, apenas o suficiente, para dizer com todas as letras, sem pular nenhuma – não teria forças – e-u-p-r-e-c-i-s-o-d-e-u-m-p-o-u-c-o-d-e-c-o-n-f-o-r-t-o. Abraço cada letra enquanto falo. E ele, ele sorri, com mais vontade agora, e até separa um pouco mais os lábios, como se fosse, não sei, gargalhar? Um movimento letal. Ele parece não me ouvir e eu não sei falar maior. Minhas pernas estão esmagando a pedra, enquanto ela responde com uma força equivalente, de mesma intensidade, apenas de sentido contrário, a lei da dor descomunal, segundo a física moderna. Eu não páro, nem a pedra, nem ele, nem eu, nem a pedra, nem ele. A delicadureza,
apenas.

sábado, 7 de março de 2009

Ventania


Onde está a felicidade da formiga
Nos dias em que faz vento?

domingo, 1 de março de 2009

Guarda-chuva


Outra vez é inverno,
E eu já posso ver você em gotas.
Na sua camisa chove vermelho.
Na sua calça, a água é azul.
Transparente é outra coisa, eu bem sei.
Outra vez é inverno,
E eu guardo a minha chuva nos olhos.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Ousar


Eu não quero que você veja aqui uma mulher pedindo que um homem a ame. Eu quero que você veja, e se para isso você precisar tirar esses óculos ou fechar os olhos, tudo bem, se para isso você precisar dos seus dedos, todos eles, no meu cabelo, tudo bem, se você precisar, e eu sei que vai, colocar uma música para aliviar a tensão dessa hora, tudo bem também, eu quero que você veja que aqui está uma pessoa pedindo para ser percebida. Não exatamente uma mulher, mas um corpo com vida, ainda. Com cheiros, com pele, com um beijo a 150 por minuto, o coração na boca, com uma vida pronta para deixar na sua mão, mas só se você ousar, se você encontrar o livro que eu te dei e ficar com vontade de chorar pela dedicatória que eu lhe fiz quando desejei que você me amasse como eu amava aquele livro. Você me amou quando leu a dedicatória? Eu citei Clarice, você lembra? Eu citei minhas víceras, você lembra? É por isso que eu estou aqui e agora sou mesmo uma mulher em frente a um homem, e agora sou pólvora, açúcar e ouro. E agora sou inverno, e agora sou uma mulher que quer ser aquecida, guardada na sua caixa de memórias. E agora sou a bolha que quer estourar, o estômago arranhando, o elevador no andar da sua casa. Você teria coragem de deixar pra outra hora o pedido de uma mulher que soluça? Eu tenho sete anos e quero que você me dê a mão. Eu não vou sair correndo desta vez. Eu tenho noventa e sete anos e quero que você me dê a mão. Eu não poderia sair correndo desta vez. Eu tenho um dia dentro de mim que é só manhã, se você, você sabe, ousar.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Desculpe

Desculpe, deixei cair um pouco de poesia em você.
Um pouco é eufemismo de coração que galopa.
Que pula degraus de dois em dois. Três em três.
Por quatro cantos, retrato de poesia-balanço.
Mal acompanho, mas sei que deixei cair bem ali.
Fio de seda e mel. Cai agora, cobre a nuca. Espera.
Seu cílio é vírgula de um poema. Cortina que rouba o mundo dos seus olhos.
Pára e vê que se derramo poesia é porque cuspo amor enquanto falo.
Sua roupa está manchada. Cor de palavra-sonho. Será que sai na água?
Desculpe, deixei cair um pouco de poesia em você.
E só consigo catar o excesso em silêncio.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Despedir


Todas as partidas são idas em partes. Vai um pouco ela. Outro pouco fica. Vai voltar para buscar a roupa semana que vem, pega o resto que sobra. Deixa o sabonete na metade, no banheiro. Um sabonete nunca entrou num caminhão de mudanças. Ele fica partido. Ele sim é só. Vai a bolsa grande, de lona, preta, dois bolsos na frente, pras chicletices de mulher, zíper-estrada, vai. Fica a verde, pequena, de fim de semana, não usa muito. Espera a próxima vez. Isso é uma despedida. Ela deixou de pedir sua metade da cama. O lençol que era cor de delicado de cereja ela já vê vermelho ou rosa ou nem liga, porque se não o pede, não se dá a ele em circustância de ver com afeto. Não peça mais esse quarto, ele diz. Despeça os finais de semana com vinhos na mesa baixa e jantares iluminados e depois despeça os finais de semana com as vozes das crianças e os com as vozes da memória de se ter pedido, um dia, há tempos, uma vida juntos. Despedir é ir, despedaçado por vontade, pedindo só que o longe esteja. E no silêncio das palavras perdidas, eles se vão.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Quando passam


Quando passam – e como passam –
Elas,
As saias do céu,
Que só vestem branco e vez em quando cinza ou preto
São sóbrias.
Disfarçando a independência.
Aprendi com as nuvens a ser mulher-moldável.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Memória

Memória tem cheiro? A criança pergunta.
O pai na hora se lembra do forno antigo expulsando o bolo branco,
almofada pra calda de laranja.
Sim, meu filho, memória tem cheiro.
E o menino pensa no armário lotado do quarto que cheira a velho.
A memoria não precisa caber em gavetas.




domingo, 1 de fevereiro de 2009

Você

Você pode chegar mais perto, se quiser. É que você não tem certeza se ele quer fazer fronteira com a sua camiseta amarela ou se prefere deixar esse corredor profundo, paredes pintadas de azul, entre vocês. Mas nenhum homem é uma ilha, você pensa. Nenhum coração é uma ilha, você pensa. Há uma reta ligando todos os pontos dentro de você, mergulhada num líquido que não é cor de parede, é vermelho, porque é amor. E há tanta coisa mais.

Há um disco do Chico na mão dele. É de 87. A capa está rasgada apenas nas pontas e as mãos dele tapam os olhos do cantor. Uma pena, você pensa. Na outra mão, um copo de cerveja. Novamente, o líquido, mas outro, dessa vez.

Você pode chegar mais perto se quiser. Você quer. Só um pouco. Você passa a mão em volta da boca, secando a ansiedade que começa a escorrer. Ele vai colocar o disco, se deixa envelopar do azul das paredes e o corredor vai virando distância vencida. Ele está perto. Você não está entendendo que essa música, a sétima do disco, ele colocou pra você? Que a agulha do disco costura um som que é seu? Todo o sentimento. O som sai empoeirado, a música tem cheiro de guardada, faz tempo que todo o sentimento está no armário de madeira, ali, embaixo da TV, esperando você chegar.

Ele sorri branco, puro, limpo pra você. O tapete da sala é listrado, assim como a camiseta dele, assim como a sua vontade, que oscila entre sins e nãos em espaços de tempo muito curtos. Você tem uma vontade listrada. Você é tão medrosa. Pensa no liquido, o vermelho. Pensa que você está aí parada, joelhos vizinhos de porta, respiração falhando, parecendo uma boba e pra quê?

Você chega mais perto, mais perto, mais perto, pede desculpas e sai correndo pela porta.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

O menino e o balão


Ele imaginava a mãe com o castigo na palma da mão pra lhe dar, tinha besteirado muito aquele dia; e corria. Imaginava o campo apitando o jogo que ia começar e só faltava ele vestir ou não o colete, último do time, arquibancada torcendo pra ele chegar; e corria. Disparado era ele e o coração que ele corria de boca fechada para não pular.

“Quer chegar em que onde esse menino que não pára de correr?”, quem via, pensava.

Fazia vento e tudo. Era rápido que só. Era muito só. Não tinha ninguém pra lhe dizer que mesmo que corresse até o mais rápido, não conseguiria voar.

- Solta essa distância que menino é bicho sem asa, é diferente de máquina que voa.

Até que um dia, o menino que nunca olhava pra baixo, viu o balão. Tão em cima das suas idéias, um céu que era perto, ele nem acreditou. Não era avião que tem que ter muito valor de papel pra voar. Nem era nada que passarinhasse. Era lá uma bola bem grande com uma cesta amarrada embaixo. O menino na cesta (tinha um menino na cesta que nem o menino que olhava pra cima) fazia tchau com a mão. E o menino-menino, ao ver aquilo pela primeira vez, foi tomado por uma coisa, uma coisa que ele não sabia dizer o que era, mas era boa, era como saber que se pode tocar as estrelas, era boa essa coisa, e voltou a correr, mas a correr tanto, tanto, tanto, tanto, tanto, que alcançou o balão.

Soneto de uma moça na janela


A moça da janela acorda e vai pra janela.
Acorda com cara de sonho ainda.
Sem saber se é moça, princesa ou balão.
Vai, então, pra janela, pra ver se a resposta flutua.

A moça da janela adora café com lírio.
A moça da janela passa manteiga no pé.
A moça da janela dá bom disco ao rádio-relógio.
A moça da janela continua com cara de sonho.

Toma um banco, vai pra rua.
Senta pra ouvir as histórias da manhã.
Corre e deixa cair o chapéu
Nem viu que o laço do vestido desamarrou.

Hoje a moça da janela acordou e deixou a janela
Foi ser ela mesma no mundo.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Lua


Por inveja do azul debaixo,
O céu também tem sua ilha:
Porção de claridade
cercada de infinito por todos os lados.
Quem tem medo quando faz escuro?

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Sorriso


Olha como tudo na foto é amarelo. O uniforme de escola das crianças, o armário sem chave, a folha colada na porta, a mesa na altura da cintura ou dos joelhos – depende se a professora está ou não na sala – e as cadeirinhas.

Tudo é amarelo, menos o sorriso da menina. Que é cor de olha pra mim e descombina do resto da sala, dentro da moldura vermelha do batom que a mãe pintou.

É uma menina em volta de um sorriso, com um coração que bate na boca.

É seu aniversário de 5 anos e só vai colocar os dentes para dormir depois da meia noite, quando o parabéns já for de outro dia.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Don't watch me dancing


Ela tem vergonha de que eu a veja dançar. Diz que a música lhe foge, e quando se dá conta, já foi parar na cintura de outra moça. Ela acha que eu ligo para a direção dos seus braços. Não ligo. Para mim, eles sempre apontam prum sorriso escapando no canto da boca. Ela tem vergonha de que eu a veja dançar por desconforto de pista. Dança, então, no carro, no supermercado, na passagem do 6º para o 7º andar do elevador. No de serviço, que é sem espelho. Dança enquanto o elevador sobe e a impaciência que faz alguns procurarem a chave na bolsa – a impaciência que dela é musical – a faz se movimentar entre quatro platéias. Para mim, que a vejo com olhos de partitura, ela sempre se move num ritmo que eu não me canso de acompanhar.

Passo de dança é ela conduzindo as sandálias até o último degrau do cinema da galeria. Eu a vejo e ela não me escuta.

Será que hoje você deixa eu dançar uma música com você? Só uma. Em lugar de dançar, eu sei que ela tem vergonha. A vergonha mais bonita desse salão. Por isso, me espanto quando ela se aproxima, sua saia alcançando meus ouvidos antes mesmo dela estender as mãos para mim. Eu que a tirei pra dançar tantas vezes enquanto esperávamos o ônibus juntos, na fila do suco, no sinal que teimava em ser vermelho. Bom dia, o 583 já passou? Nem me interessa a resposta.

Eu, que nunca dancei com ela por vergonha dela em lugar de dançar, eu, que agora tenho uma das mãos na sua cintura, no seu ombro, na sua cintura e a outra na sua mão esquerda, estou conduzindo a minha vontade por um salão lotado de estranhos. Desculpe, com licença.

Eu, que aceitei ela ter esquecido o desconforto na outra saia, a que ficou em casa, continuo a ocupar esses espaços com os passos nossos e leves. Os meus e os dela. Que me tirou pra dançar e eu fui atrás, da porta do banheiro feminino à mesa com as amigas. Não tive coragem para mais.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Casa vazia

A casa, de pequena,
Se expandiu com a falta.
Vontade de voltar,
Mas anti-horário é sentido inútil.
Descuido meu de miudezas,
Culpa do dia.
A sobra preenche,
Não combina.
Será que alguém vai notar
Que o botão caiu?

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Delicadices



Outro dia, vi um pássaro nas costas de uma menina.
Mentira.
Outro dia, vi uma menina de costas para um pássaro.
Mentira.
Outro dia, vi as costas de um pássaro sobre uma menina.
Mentira.
Para onde vão essas delicadices quando não as invento?