terça-feira, 23 de junho de 2009

Polônia




“Você sabe onde fica a Polônia?”, pergunta a senhora de 85 anos.
“Na Europa”, responde o neto mais velho.
“Entre a Alemanha e a Ucrânia”, responde o filho do meio.
“Longe”, responde a neta mais nova.
“A senhora está esquecendo as coisas?”, responde a nora.
“Não quero saber”, responde a antiga vizinha.
“Praquele lugar eu não volto”, grita o marido.
A senhora então, puxa as mangas da camisa, como fizesse um calor repentino e diz:
Entre o começo das mãos e o cotovelo. Não a encontro em nenhum outro lugar.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

O primeiro

Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. O primeiro. Éramos dois pequenos. Eu maior. Pai me fez maior da turma de compridez, mãe me fez de coração. Era uma menina que cabia pouco. Mas, nesse dia, a régua faltou. Ele me abria sorriso porque era arredondado de barriga. Os outros me faziam mostrar menos dente. Quem faz desfeita com açúcar, gente doce desconfia. Inteligência se afeiçoou a ele e a gente escadeando mais alto no pátio da escola pra ouvir as coisas acontecidas, até mesmo em número, na voz dele. Eu perguntava: essa não é a voz mais passarinhosa do mundo? E as meninas botavam o olho longe. Só eu mesma que achava. Foi quando ele pegou os meninos pra dar interrogação: o sorriso dela não é o mais? Prefiro a Fernanda, disse um. Depois da Carol, disse outro. E ele botando ponto final sozinho na duvida. Gostando. A gente precisa dar fim a essa coisa de engolir borboleta. Tristeza é botar elas pra dormir. As minhas não tinham sono há muito tempo. Um dia, ele disse que vinha em casa falar. Eu: é assunto de doença? Ele: mas num mata, eu acho. Eu: é assunto de ir pra longe? Ele: só se for junto. Foi quando ele barulhou na porta. Entrou. Peixeou no sofá azul, na ponta, sem muito mergulho e levantou um papel que falava: eu gosto de você. Só o papel pra falar mesmo. Eu, nada. Era muito. Era o primeiro.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

O Jogo da Amarelinha - Julio Cortázar

"Toco a tua boca, com um dedo toco o contorno da tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você.

Tu me olhas, de perto, tu me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os cíclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água."

sexta-feira, 5 de junho de 2009

A voz do autor

Estou emprestando a voz a uma mulher que não sabe falar em público. Ela ouve os homens falando e ri, você acredita? Ela finge que entende o que os homens dizem, principalmente, quando são altos, bem apessoados e têm carro. Estou emprestando a voz a uma mulher que não é. De onde ela veio? Eu não sei. Sou somente a proprietária e ela, o inquilino. Está me saindo mais caro do que eu pensava, mas já assinamos contrato, fizemos acordo, apertamos as mãos, fechamos negocio, abrimos garrafa de vinho pra comemorar. Mentira. Eu nunca beberia com uma mulher como ela. Ela é assim, como eu posso explicar? Ela é uma mulher que bebe whisky misturado com cerveja barata. Não fica bem pra uma pessoa como eu andar com uma mulher como ela. Não que eu ande, claro que não. Negócios são negócios. Olha como ela se veste: jaqueta jeans, mochila jeans, saia muito curta, acho tão vulgar. Vulgar! Estou emprestando a voz a uma mulher que grita. Que muda o tom muitas vezes enquanto fala, alternando volumes com a mesma freqüência de quem alterna pés enquanto caminha. Não que eu seja egoísta, egocêntrica ou coisa que o valha, mas eu tenho apreço pela minha voz. Não queria largar na boca de uma qualquer. Ela é uma qualquer. Ela nunca saiu do pais, você acredita? E quer saber do pior? Ela diz que já foi pra Argentina. Duas vezes. Viu num filme na televisão e agora acha que conhece o pais. Um filme não, um programa desses de turismo que passa na TV aberta. Ela mente. Estou emprestando a minha voz a uma mulher que dorme de calcinha e se cobre com lençol. Ela diz que não sente frio. Quando? No dia em que combinamos que a minha voz seria dela. Não vai durar muito tempo. É só por algumas páginas. Sete capítulos, combinamos. Nem mais, nem menos. Também, ela não teria muito mais a falar além disso. O que uma mulher que não sabe nem a capital da Alemanha pode ter tanto a dizer? Ela sai com qualquer cara que aparece. Ela tem os dentes amarelados. Ela volta pra casa tarde, esquece a chave e acorda a vizinha pra não dormir no corredor. Ela já dormiu no corredor. Ela dança de forma sensual sem nenhum pudor. Ela já disse uma vez, não lembro quando, mas disse, que não quer ter filhos porque da muito trabalho ter que arrumar alguém pra cuidar deles no fim de semana. Você ouviu? Ela quer viver como uma adolescente. Ela não sabe a idade que tem. Eu chutaria 35. Você acha pouco? Estou emprestando a minha voz a uma mulher que chora na novela e no intervalo da novela. Acendo um cigarro. Estou rouca. E ela, ela vive.