sábado, 28 de março de 2009

Azul


Os olhos azuis. De tanto abrir embaixo d’água.
Tristeza de peixe colore.
E sempre é possível lavá-los sem dor.

quinta-feira, 26 de março de 2009

A mãe


A mãe acorda antes mesmo do dia. Não é um tic-tac que a desperta atrás da cama de madeira escura, é um tum-tum de mãe mesmo, no centro da cama. Então, antes do dia, há a mãe, empurrando a coberta de flores miúdas e erguendo-se sobre os chinelos que são de cor cinza, como os cabelos. Ela precisa acender a luz do banheiro não para enxergar os grampos que vai tirar um a um dos cabelos – todo dia é assim – mas para que nenhum se perca no caminho até a pedra branca de mármore que faz da pia uma ilha invertida, um ponto de água cercado de dureza.

Ela entra no quarto dos meninos, paredes azuis, motivos de mar, como quis o mais velho. O quarto-cofre, como chama a mãe quando está apenas com ela mesma. O joelho direito ela apóia na cama mais baixa e cobre o pequeno de lençol amarelo e de dorme, meu príncipe. Com o mais velho, ela apenas passa a mão sobre o rosto, como se assim garantisse um último sonho bom antes da hora de acordar.

O quarto, o cofre, o de motivos de mar, o que tem dois meninos de alturas diferentes em duas camas de alturas diferentes, respira amor. E todos sentem. A mãe continua e de lá até a cozinha um corredor de paredes brancas e vermelhas lhe sorri imóvel. Passa por aniversario de vó, campeonatos de bola, semelhanças de pai e filhos. Ela não nota mas o quadro das frutas está ligeiramente torto, o cuidado passa reto pelas frutas e vai até o filtro de água da cozinha. A água sai marrom às vezes. Mas o amor nunca é marrom, porque é potável. A mãe olha o relógio da parede pendurado sobre a mesa e vê que já são seis horas. Ha um convite, então, dentro da moldura redonda sobre a mesa, e a mãe caminha alguns passos, só mais alguns, para alcançar as janelas e deixar chegar, finalmente, o dia.

segunda-feira, 16 de março de 2009

A beleza

"tu, que ontem eras só toda a beleza,
es também todo o amor agora."
(Jorge Luis Borges)



Mais bonita do que hoje, só no Dia. Chamo de Dia, com letra maiúscula, o dia em que você me pediu pela primeira vez que eu cuidasse. Você não disse de você. Disse apenas, com faísca nos olhos e raízes nos dedos que me tocavam: cuida. E eu abri os braços como se um deles apontasse o Japão e o outro o Canadá. E o seu vestido branco, perto do ombro direito ficou três gotas molhado. No Dia, eu vi que as mulheres ficam lindas quando podem chorar. E mais lindas quando o choro não é dor. Embora você dissesse que doía sim. Doía pelas outras mulheres que não eram de homem nenhum que as quisesse e cuidasse e prendesse e soltasse e abrisse, como você era minha. E aí eu vi que não há nada mais bonito do que uma mulher que precisa que um homem durma depois dela para que ela faça o seu berço e sonhe em paz, até o próximo sol. E aí eu vi que não havia nada mais necessário para um homem que carrega flores no peito, do que a sua beleza naquele dia.

Mas hoje, hoje você despe-se do seu vestido branco, do cinza listrado, do florido que eu tanto gosto, hoje você despe-se da sua sandália de dedo, dos sapatos de boneca. É tudo pano que sobra. E veste apenas as mãos daquele mesmo homem que carregava flores no peito e agora carrega também terra fértil para que cresçam mais flores e fadas e luas neste quarto-mundo. Veste as mãos deste homem que o braço dele é a tua saia de seda pura. Braços-abrigo, nossa melhor roupa de festa. Comemoraremos enquanto você se cobre com os olhos, as sombras, os cheiros que são meus, e os confetes estouram e os sorrisos se costuram e os tecidos se misturam fazendo inveja às outras, àquelas.


Quantas mulheres eu haveria de conhecer na vida cuja beleza me doesse dessa forma? Penso nisso enquanto espero, na sua janela, que você acorde. Do outro lado da janela é muito pequeno para quem quer ter o mundo em dez dedos. E eu não entendo como não tem uma fila de gente ou qualquer coisa viva esperando para ver você acordar. Lindo é um avião decolando, você é outra coisa que eu não sei dizer. Sei que o sentido de tudo é um par que coloco sobre você e passo horas inteiras te olhando, me cansando apenas pelos dias em que não o fiz. Se hoje faz um ano do Dia, essa então é a idade da minha alma.

Antes dos seus, eu nunca tinha reparado nos cílios de nenhuma outra mulher. Mesmo que eu já tenha dito que tenho amor, nojo, desejo, raiva por elas, e tudo isso é coisa que se sente olhando em linha reta. Hoje eu sei que os cílios são a sua pequenice que eu mais gosto. Gangorra do pé ao céu. Daqui, estou sobre eles. E me sinto mais feliz do que uma criança de cinco anos.
O que seria das palavras se não fosse você e o teu jeito de dormir com seis travesseiros? As palavras dançam até virarem poema, apenas para dar forma a esta imagem que é a delicadeza sobre um lençol. Outro dia mesmo o “sublime” encontrou o “profundo” e eu escrevi dois dedos de texto para você.

Outra mulher não me faria mais vivo do que você me faz. Outra não me abriria na página certa. Antes, me fugiam as palavras, hoje, elas até formam fila.

Não sei se você sabe, mas todos os meus gestos são declarações de amor a você. Por isso, te peço, como você me pediu no Dia que eu cuidasse, te peço como alguém para quem um sim é ouro, te peço em um volume que outra não ouviria, volume perto, canto de pedido, te peço apenas que, ao acordar, ilumines o quarto, o mundo, a minha janela, com o seu sorriso.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Parallel Synchronized Randomness



Ele sorri. Eu dobro meus joelhos e estendo meu corpo por sobre uma pedra gigante, o peito endurecido de cinza, um arco que se forma com os braços encompridando-se em sua direção. Ele sorri e o meu estômago se comprime. Mais e mais, à medida em que a boca se alarga. Quase não posso engolir essa nossa saliva tinta de vinho. Tento esticar um pouco uma das mãos, como se assim pudesse tocá-lo e fazer parar o movimento da sua boca, de maneira que eu, que já quase não respiro, possa de novo voltar à superfície. 


Mas como? Eu penso, como ele consegue me ver aqui debruçada sobre um peso que não é meu, que não sou eu, e que aos poucos – eu começo a temer – faz com que a frieza monolitica e eu sejamos uma. A rocha multiplicando sua imobilidade.

É com um último fio de delicadeza, então, que eu tento puxar algum ar, apenas o suficiente, para dizer com todas as letras, sem pular nenhuma – não teria forças – e-u-p-r-e-c-i-s-o-d-e-u-m-p-o-u-c-o-d-e-c-o-n-f-o-r-t-o. Abraço cada letra enquanto falo. E ele, ele sorri, com mais vontade agora, e até separa um pouco mais os lábios, como se fosse, não sei, gargalhar? Um movimento letal. Ele parece não me ouvir e eu não sei falar maior. Minhas pernas estão esmagando a pedra, enquanto ela responde com uma força equivalente, de mesma intensidade, apenas de sentido contrário, a lei da dor descomunal, segundo a física moderna. Eu não páro, nem a pedra, nem ele, nem eu, nem a pedra, nem ele. A delicadureza,
apenas.

sábado, 7 de março de 2009

Ventania


Onde está a felicidade da formiga
Nos dias em que faz vento?

domingo, 1 de março de 2009

Guarda-chuva


Outra vez é inverno,
E eu já posso ver você em gotas.
Na sua camisa chove vermelho.
Na sua calça, a água é azul.
Transparente é outra coisa, eu bem sei.
Outra vez é inverno,
E eu guardo a minha chuva nos olhos.