sexta-feira, 5 de junho de 2009

A voz do autor

Estou emprestando a voz a uma mulher que não sabe falar em público. Ela ouve os homens falando e ri, você acredita? Ela finge que entende o que os homens dizem, principalmente, quando são altos, bem apessoados e têm carro. Estou emprestando a voz a uma mulher que não é. De onde ela veio? Eu não sei. Sou somente a proprietária e ela, o inquilino. Está me saindo mais caro do que eu pensava, mas já assinamos contrato, fizemos acordo, apertamos as mãos, fechamos negocio, abrimos garrafa de vinho pra comemorar. Mentira. Eu nunca beberia com uma mulher como ela. Ela é assim, como eu posso explicar? Ela é uma mulher que bebe whisky misturado com cerveja barata. Não fica bem pra uma pessoa como eu andar com uma mulher como ela. Não que eu ande, claro que não. Negócios são negócios. Olha como ela se veste: jaqueta jeans, mochila jeans, saia muito curta, acho tão vulgar. Vulgar! Estou emprestando a voz a uma mulher que grita. Que muda o tom muitas vezes enquanto fala, alternando volumes com a mesma freqüência de quem alterna pés enquanto caminha. Não que eu seja egoísta, egocêntrica ou coisa que o valha, mas eu tenho apreço pela minha voz. Não queria largar na boca de uma qualquer. Ela é uma qualquer. Ela nunca saiu do pais, você acredita? E quer saber do pior? Ela diz que já foi pra Argentina. Duas vezes. Viu num filme na televisão e agora acha que conhece o pais. Um filme não, um programa desses de turismo que passa na TV aberta. Ela mente. Estou emprestando a minha voz a uma mulher que dorme de calcinha e se cobre com lençol. Ela diz que não sente frio. Quando? No dia em que combinamos que a minha voz seria dela. Não vai durar muito tempo. É só por algumas páginas. Sete capítulos, combinamos. Nem mais, nem menos. Também, ela não teria muito mais a falar além disso. O que uma mulher que não sabe nem a capital da Alemanha pode ter tanto a dizer? Ela sai com qualquer cara que aparece. Ela tem os dentes amarelados. Ela volta pra casa tarde, esquece a chave e acorda a vizinha pra não dormir no corredor. Ela já dormiu no corredor. Ela dança de forma sensual sem nenhum pudor. Ela já disse uma vez, não lembro quando, mas disse, que não quer ter filhos porque da muito trabalho ter que arrumar alguém pra cuidar deles no fim de semana. Você ouviu? Ela quer viver como uma adolescente. Ela não sabe a idade que tem. Eu chutaria 35. Você acha pouco? Estou emprestando a minha voz a uma mulher que chora na novela e no intervalo da novela. Acendo um cigarro. Estou rouca. E ela, ela vive.

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