segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Portas Abertas

A generosidade começava no movimento das portas. Os armários sempre meio abertos, nunca fechados por completo. Como se as portas de madeira escura fossem uma senhora, muito vó, que já não lembrasse mais como se guardam os segredos. Camisa de seda com estampa de gaivota (mãe diz que essa era a sua favorita, pelo tecido, pelo desenho não) ponteando a gola pro lado de quem abre, e eu não sei qual leveza é maior, se a do fundo ou a do que voa. A camisa. Você era a fada mais bonita daquela apresentação de balé. Não era fada, vó, era bruxa. Pois era tão bonita, que pro meu olho, apareceu fada. Ganhei flores e abraços de gaivota nesse dia. A camisa. Você lembra da vovó com esses óculos redondos?, pergunta minha mãe. Lembrar, às vezes, é viver com saudade. Desde que a vovó morreu, eu vivo com saudade os óculos redondos, os telefonemas de domingo, o sotaque de quem trocou uma casa longe por outra aqui. O sotaque de quem perdeu bonecas, quintais com árvores, de quem perdeu mãe. Vó, não é dois pessoas, é duas pessoas. Galinha é galinha e pessoa é pessoa. Isso eu preciso saber, o resto não me amola. A gente ria. Era engraçado? O sotaque. Esses óculos voltaram a estar na moda, você sabia? Quer pra você? Não ficam bem pra mim. Visto os óculos, servem perfeitamente para o meu rosto. Minha mãe ri e fala com um certo tom de deboche: por que você sempre gostou dessas coisas que não são muito do seu tempo? Talvez porque eu nunca tenha conseguido tirar as pessoas das coisas. E as melhores pessoas estavam dentro das coisas mais fora do meu tempo. Ou mais dentro. Acontece. Respondo apenas: não sei, é gosto. Não são só estes óculos que colocam o passado no meu rosto.

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