quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Receita de família

A gente precisa lembrar que foi escravo no Egito. Mas eu já preciso lembrar de tanta coisa. Será que de vez em quando, eu posso esquecer essa parte da escravidão, da fuga às pressas, do mar indeciso? Que o meu pai não me ouça, mas a memória nem sempre é uma benção. Ainda bem que não há espaço para guardarmos tudo e freqüentemente podemos arrumar nossas gavetas em paz. O problema é quando a doença faz essa escolha por você. A doença não gosta de perguntas feitas há cinco minutos. A resposta, então, ela nem dá bola. Ninguém ligou muito quando a bisavó esqueceu em que ano veio da Polônia. 34 ou 36? Não faz mesmo muita diferença. Também não houve grande comoção quando ela começou a confundir os nomes dos mais novos. Mas quando a minha avó disse que a mãe não lembrava mais como se fazia a chalá, as reações foram as piores. Minha tia sugeriu que alguém aprendesse antes que ela esquecesse de vez. E lá fui eu. Minha avó, sem paciência, logo disse: se ela se confundir muito, liga a TV e desiste. Eu e ela na cozinha. E uma folha de papel que chegou ao Brasil em 34 ou 36, com a ordem e as quantidades dos ingredientes. Eu pegava duas xícaras de farinha e ela jogava metade de volta dentro do saco. Eu dizia: mas está escrito que são duas xícaras. E ela fazia que não com a cabeça e com a mão. Primeiro a água, depois o fermento. Ela jogava o fermento primeiro. Parecia mesmo que a minha avó estava certa. Comecei, então, a me lembrar do cheiro, o cheiro que abafava todos os perfumes da casa, que acordava o tio no sofá, que era doce e salgado na medida exata, que reunia uma família inteira em volta dele. Exatamente o cheiro que eu comecei a sentir naquela cozinha, com a minha bisavó do meu lado, sentada na cadeira, pacientemente esperando o momento de abrir o forno. Só então eu entendi que ela não seguia a receita. Ela era a receita. E disso, eu nunca quero me esquecer.

 

 

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